Julio Cortázar (entrevista e carta manuscrita): “No meu coração a América Latina existe como uma unidade” /entrevista de viviana marcela iriart, Caracas Setembro 1979, Revista Semana









JULIO CORTÁZAR E A AMERICA LATINA:

“DEVEMOS LUTAR CONTRA O CHOVINISMO”


  

 Sua voz grave e fanhosa atende ao telefone, sem intermediário, simplesmente ele atendendo ao telefone. Cortázar. Sua voz soa séria, como a imagem que tenho dele, uma imagem que sempre tem 40 anos, impossível imaginá-la mais (e suas biografias dizem que nasceu em 1914). Explica que quer ver a revista antes de nos conceder uma entrevista, e nem ele nem a gente sabe o que aconteceu, mas as revistas que deixamos no hotel jamais chegaram às suas mãos. Igualmente sugere vermos no Parque Central, na inauguração da "Primeira Conferencia Internacional sobre o Exílio e a Solidariedade Latino-americana nos anos 70”, na que ele participou. 

E estava ali, chamando a atenção embora sem ele quiser: era o mais alto de todos os presentes. E ali estava com a barba e bigodes acobreados que tem há tanto tempo, com a seriedade com a que aparece em revistas e jornais, com uma simpatia que não lhe imaginava. Ali estava, era Cortázar. Um ser humano como você e eu, sim, com dois olhos, uma boca, duas mãos, virtudes, defeitos, desejos, saudades. 

A entrevista foi num canto do Hotel Anauco Hilton, junto com o Assessor da Semana, Jorge Madrazo, o fotógrafo Eduardo Gamondés e quatro ou cinco admiradores do escritor, imersos dissimuladamente –ou não- na conversa. 

Ele falou devagar, calidamente e os seus olhos claros percorriam os nossos enquanto suas palavras abriam-se no centro de nossas mentes, ficando ali muito tempo depois de ter sido pronunciadas. E ele ficou conosco quando a noite chegou e nos encontrou em lugares distintos. Como uma presença invisível, desejada, sempre presente a partir do primeiro encontro.



ACERCA DA LITERATURA E DA POLITICA

 “Bem, claro que me incomoda ser mais requerido para dar opiniões políticas que literárias, por que sou um homem literário. Assim como os franceses costumam referir-se ao homem como um animal pensante o um animal filosófico, eu sou um animal literário. Nasci para a literatura e se fui assumindo lentamente este compromisso de tipo ideológico que eu tenho e vocês conhecem,  isso foi ao término de um processo muito lento, muito complicado e ás vezes muito penoso.

Por que como a minha profunda vocação é a literatura, há momentos nos que as circunstâncias, as de tipo político –o ter que vir a esta conferencia, escrever artigos de conteúdo político, atacar a Junta chilena ou argentina, ocupar-me de casos de desaparecidos, mortos, torturados, contestar alguma da enorme correspondência que recebo, porque a gente pensa que eu sempre posso dizer alguma coisa e ajudar- bem, há momentos nos que, o confesso, por que  é verdade, tenho um grande desânimo. Porque me digo “bem, alguma vez vou poder escrever um romance? O meu ideal seria ter um ano ou dois de tranqüilidade, para escrever um romance que me dá voltas na cabeça há muito tempo. Por isso é que cada vez mais me converto num contista, porque os contos os escreve no avião, na sua casa, na rua...”




ATÉ A FRANÇA CHEGOU O EXÍLIO

"Há 28 anos que eu moro fora da Argentina, mas nunca me considerei um exilado, porque para mim o exílio é uma coisa compulsiva, e eu morava na França porque me dava vontade. Por que é um país do que eu gosto, onde me sinto bem, e aonde ia escrevendo minha obra sem dificuldades nem problemas. E de repente, a partir do golpe militar, soube que me tinha convertido num verdadeiro exilado. É dizer, que agora tenho esse sentimento, que têm os exilados todos, onde os aspectos negativos são muito fortes, pesam muito. Isso me levou por primeira vez reflexionar acerca do problema do exílio. É então que eu me deu conta que eu ou qualquer outro exilado entra no estereotipo, na noção essencialmente negativa, esmagadora do exilo, está outorgando uma carta de triunfo à ditadura que o exilou. Então considerei o problema em termos muito claros: é uma loucura, é ilógico, não se pode aplicar cientificamente, mas eu em vez de estar numa marcha para diante dou marcha para trás, inverto a velocidade e entendo o exílio em termos positivos. Eu diz-lo  em Paris, e fez sorrir a muita gente, diz que é como se o Videla, agora que me exilou, me tivesse dado uma bolsa de estudos para escrever fora da Argentina. E a minha melhor maneira de contestar a esse exílio é dar o máximo do que eu posso dar como escritor,  e o que estou tratando de fazer. 

Mas ao exilado que chega totalmente quebrado, seja porque ele mesmo tem sofrido, incluso fisicamente, antes de poder sair ou porque há muitos mortos, desaparecidos, torturados em torno dele, não se pode pedir-lhe que comece sua vida de exilado com um sorriso, dizendo: “isto está muito bem”. Não, porque está horrorosamente mal. Quando para todo homem e mulher que tem salvado a inteligência chegue o momento de pensar na nova vida que está começando, é nesse momento em que eu o incito a que em vez de cair nos estereótipos e dizer “eu sou uma vítima, eu sou um exilado, eu tenho sido injustamente expulso do meu país”, e que isso se traduz pouco a pouco em amargura, numa nostalgia esmagadora, eu o incito a que –saído do primeiro choque traumático- volte a se sentir um homem ou uma mulher plena”.



 SUL, PAREDÃO E DEPOIS...

"Sim, porque ¿para quê serve a saudade de juntarmos cinco argentinos, fazer um assado, beber mate, pôr um disco da Susana Rinaldi, Mercedes Sosa ou Gardel (segundo os gostos) e comprazermos na saudade de um passado ao que quiséssemos ressuscitar? Eu o faço também, mas isso não me impede no dia seguinte acordar em Paris, e estar em contato com muita gente que não são argentinos e levar o meu trabalho adiante.

De modo que é um assunto que há que matizá-lo, não é muito simples, e claro, não todas as pessoas estão igualmente preparadas no plano mental ou intelectual. E o operário, que do ponto de vista intelectual está mais limitado – por que por a sua condição de operário não tem podido estudar-  esse homem é realmente o que está mais em perigo como exilado. Se um obreiro tem que viver em Suécia, só o problema do idioma é para ele uma espécie de ameaça de morte. E ali a saudade, Gardel, suas lembranças e suas fotografias voltam-se sua única defesa. E eu acho que todos nos podemos fazer muito a traves de publicações, de atos, de reuniões, para faze-lhes sentir que não estão sozinhos."




O EXÍLIO CULTURAL

“O que para mim é e tem sido traumático, é um fenômeno no que o mundo todo não pensa, e que no caso de um artista exilado é fundamental. O que eu chamaria o exílio de tipo cultural: é terrível quando você se da conta de que no seu pais há uma barreira de censura que faz, por exemplo, que eu não possa publicar mais livros na Argentina. Então se descobre  –e é isto o horroroso para mim-  que estou exilado, mas que do outro lado, no meu pais, há 26 milhões de exilados em  relação conosco. Eu estou separado dos meus leitores, mas meus leitores estão separados de mim: meu último livro de contos não pôde  ser publicado na Argentina por que incomodaram a Junta. E não faço disto uma questão pessoal: estão separados de 150 magníficos escritores uruguaios, chilenos e argentinos que não se podem editar em nosso pais.  

No Chile, desde 11 de Setembro de 1973, uma geração de jovens foi tomada pela Junta e metidos numa escola fascista dirigida por militares. Tem passado seis anos e eles viveram a idade crítica (entre os 12 e 18) sob esse regime, milhares e milhares de crianças chilenas que nestes momentos crêem na Junta, crêem na Segurança Nacional, crêem que todos nós somos traidores, crêem que o Chile é um país injustamente atacado e combatido. Não têm a culpa, pobrezinhos, porque em seis anos os têm convertido no mesmo que o Hitler converteu às juventudes hitleristas, ou o Mussolini aos “balilhas”. Bem, isso é para mim uma das coisas mais horrorosas, e não podemos fazer nada, intelectualmente. Porque isto eu digo-lhes, mas ninguém vai escutá-lo na Argentina, ninguém vai lê-lo, vocês vão publicá-lo e exceto que alguém o leve num bolso, ninguém vai poder lê-lo ali. "



O ESCRITOR E O SEU COMPROMISO COM A REVOLUÇÃO

“Eu tenho uma grande latitude no plano de trabalho dos escritores. Eu acho que pode haver escritores puros, que não introduzam mensagem política nenhuma no que fazem. Acho que isso é possível, e que a sua obra pode ser revolucionária se é uma obra criadora, que renova, uma bela obra. O único que exijo nesses casos é que a pessoa que faz literatura pura mostre com sua conduta pessoal que não é um fugido. Que se ele não põe política no que faz, é somente porque  –por exemplo-  sua vocação é escrever um soneto onde a política não entre. Mas ele tem que demonstrar com a sua conduta, com sua responsabilidade pessoal, que tem direito a escrever esses sonetos. 

Olhe, eu divirto-me muito em escrever literatura pura... No ano que vem publicarei  um livro, que estou terminando, onde há um ou dois contos com conteúdo político, os demais são contos fantásticos. E acho que tenho direito a escrevê-los, porque meus leitores sabem quem sou. Então, ¿por que me vou sentir obrigado a pôr a política em cada cosa que escreva? Minha literatura, então, seria muito má, sou muito consciente disto. Todo homem não tem nascido para a ação, não todo homem tem às vezes, ¿como te dizer? As aptidões físicas para arriscar-se num plano de ação. Não todo homem tem nascido para ser soldado de uma revolução. Pode ser um homem de uma vida interior, de uma timidez de caráter, que o leva a escrever exclusivamente uma obra que canta à revolução. Mas eu não acredito que se possa exigir uma militância prática a o mundo todo.”


VIETNAM E A MANIPULAÇÃO DA INFORMAÇÃO PELO IMPERIALISMO

 “Eu acho que é positivo que se denunciem as violações de direitos humanos ocorridas nos países socialistas, na medida em que se tenha segurança do que se denuncia. Porque, quando se fala de violação de direitos humanos nesses países, eu, por principio, examino com muito cuidado o expediente, porque sei de sobra até quê ponto a informação do imperialismo reforma, muda e modifica as coisas.

Eu não me esqueço que, por exemplo, seguindo a última etapa da revolução nicaragüense no Herald Tribune em Paris, podia-se encontrar uma análise de como os ianques  preparavam ao leitor norte-americano para que estivesse em contra do triunfo. Falavam de Somoza como o tirano, o ditador, mas quando falavam das colunas que avançavam falavam: “as colunas marxistas”. A cada oito ou nove parágrafos punham-nos  essa palavrinha,  para que a boa senhora que mora em Minesotta ou em Detroit diga:  “Meu Deus, os comunistas!”. Então, quando se fala do caso de Vietnam, eu estou esperando me encontrar com García Márquez, que esteve ali fazendo uma grande pesquisa, para que ele me conte as coisas. Eu não me confio dos telegramas de imprensa. Mas quando na Rússia e nos países da órbita socialista há flagrantes violações aos direitos humanos, eu pessoalmente não me calo."


A AMÉRICA LATINA COMO UNIDADE: ¿REALIDADE OU UTOPIA? 

 “Vou dizê-lo de uma maneira sentimental, quase como se o dissera o Rubén Darío: no meu coração, América Latina existe como uma unidade. Sou argentino, claro, (e sinto-me contente), mas fundamentalmente sinto-me latino-americano. Sinto-me na minha casa em qualquer pais da América Latina, sinto as diferencias locais, mas são diferenças  dentro da unidade. Isso, no plano pessoal. No plano geopolítico, está a nefasta política de dividir para reinar, que têm aplicado os norte-americanos desde há muito tempo. Fomentando os nacionalismos, as rivalidades entre os países para dominá-los melhor, destruindo o sonho de Bolívar dos “Estados Unidos da América do Sul” e criando diferentes países orgulhosos, seguros de eles mesmos, dispostos a fazer a guerra por questões que não resistem um análise profundo; isso é uma realidade.

E eu penso que um dos deveres capitais dos políticos de esquerda, dos escritores revolucionários, é tentar por os meios todos de lutar contra esse chauvinismo, que faz que um menino argentino na escola aprenda que ele é muito mais e melhor que um menino chileno ou paraguaio. 
Aliás que em minha visita anterior falei com venezuelanos da rua e sua idéia sobre os colombianos, seu desprezo, seu ódio, me aterraram. O mesmo acontece, com certeza, no caso inverso. Isso é prova que dividir para reinar funciona, que aos ianques lhes convém seguir fomentando-o e que as ditaduras locais estão encantadas em fazê-lo. "


ENTÃO FALOU SOBRE A VIDA E A MORTE

"Um dia na minha vida é sempre uma coisa muito formosa, porque eu sinto-me muito feliz de estar vivo. Não tenho nenhuma intenção de morrer, tenho a impressão que sou imortal. Sei que não o sou, mas a idéia da morte não me molesta e também não tenho-lhe medo. Denego-lhe existência, então, isso me ajuda a viver de uma maneira, ¿como dizê-lo? Debaixo do sol, solar.

Eu estou muito feliz por estar vivo, e, além disso, há uma coisa na que pouca gente pensa. Acho que é um prodígio maravilhoso que todos nós sejamos seres humanos, que estejamos no mais alto da escala zoológica, por um azar puramente genético. Por que você não é responsável de ser quem é. Vimos de uma longa cadeia genética e quando vejo uma galinha ou uma mosca que também têm nascido das mesmas cadeias genéticas, maravilho-me por ser um homem e não uma galinha. Sou um homem, com tudo o bom e o mau que isso tem. E estou contente em ter tido uma consciência, de ter visto mais do que uma consciência pode ver do planeta.  E não te falo mais”.


Quando pronunciou estas palavras tinha mais de uma hora que estava conosco, contando anedotas e sorrindo, às vezes, como uma criança. Sim, ele é um ser humano como você e como eu, para falar precisa de mover a boca na mesma forma na que o fazemos você e eu. Mas ele é Julio Cortazar.


Caracas Setembro 1979
Publicado na Revista Semana
em Novembro 1979
Fotografias Eduardo Gamondés 

Tradução: Alejandra Rodrigues
 (alita_matias@hotmail.com)


  

“Paris, 30 de Novembro de 1979

Querida Viviana: 

                Obrigado pelo envio da Semana. A entrevista que me fez ficou muito bem tendo em conta as circunstancias caóticas nas que a fizemos. Há tido muito em conta coisas que eu diz, e espero que os leitores sintam a autenticidade dupla de seu trabalho e da minha palavra.

               Obrigado outra vez, com um abraço muito cordial de seu amigo

                                                  Julio Cortázar









¡BRAVO JULIO CORTÁZAR ! 


Homenaje a 100 años de su nacimiento y 30 de su partida: 
26 Agosto 1914 - 12 Febrero 1984 / 
Homenagem aos 100 anos de seu nascimento e 30 de sua partida:
 26 agosto 1914 - 12 fevereiro 1984