@Eduardo Gamondés |
Desde o estreio de Porta Aberta ao Mar (Puerta Abierta al Mar, 2007, Venezuela), com Rosalinda Serfaty e Fedra Lopez, a criação literária da jornalista
argentina-venezuelana Viviana Marcela Iriart tem começado a
se conhecer de maneira diferente. O sucesso da posta em cena de Porta Aberta...,
produzida por Benjamín Cohen no Ateneo de Caracas, resultou
um fato fortuito para pôr de releve a existência duma série de textos não só
teatrais senão também romancistas e poéticos de Iriart. A publicação destas obras por uma editorial
reconhecida está ainda por acontecer mas graças à comunicação cibernética, os fragmentos de suas
obras e dados específicos sobre sua diligente e sistemática labor estão sendo
apreçados num círculo internacional cada vez mais respeitável. É suficiente a incursão
pelas seções de Escritoras Unidas y Compañía para captar a entrega e compromisso desta
criadora.
De seus textos merece especial destaque seu romance Longe de Casa, (Lejos de Casa, 1983) já que constitui o trabalho germinal de toda sua produção. Nela, uma jovem estudante argentina, expatriada pela ditadura militar, projeta a visão do ambiente que abruptamente dá-lhe se ao incursionar em outras esferas culturais (primeiro na Venezuela e depois nos Estados Unidos), vivências estas que deixarão uma dilacerante pegada de ressonâncias múltiplas na protagonista. É importante notar que Longe de Casa, de conteúdo autobiográfico, está emoldurado dentro das cruciais lutas pelos direitos civis que brotaram irrefreáveis em todo o hemisfério. A marca do exílio, esse desarraigamento pelo que já não se está no seu lugar em nenhum lugar, será uma constante predominante nas criações de Iriart, projetada em variadas explorações estilísticas e diversos gêneros que irão desde uns “quase” poemas, como os chama sua autora, até seu romance Uma Certa Olhada (Una Cierta Mirada ), fluida e transgressora, passando por uma lisa adaptação teatral de uma entrevista a Truman Capote.
Estas folhas quase inéditas de Iriart (sua publicação
privada não tem passado de cem exemplares) giram ao redor dos temas da perda, o
desencontro, a repressão de regímenes ditatoriais, a violência institucional e,
sobretudo, o desconcerto ante os efeitos alienantes da mesma nas relações
humanas. O tema da paixão, como eixo de suas
criações, surgirão com maior relevância mais tarde concordando com a atitude
renovadora e irreverente que caracteriza a escritura de Iriart.
Dentro da produção poética, a autora explora com intensidade e com soltura vários registros. Assim, se percebem achados metafóricos nos lampejos ternos e evocativos que afloram em poemas tais como os incluídos em A Casa Lilás, (La Casa Lila, romance 2002).
Passam
três meninos pequenos montados num velho cavalo grande
Passa
a menina que fui indo à escola em sulky.
Os
meninos riem, são felizes.
Também
eu o era, então.
Param-se
diante duma amora orgulhosa de frutos
e as mãozinhas volteiam no ar, desesperadas.
O cavalo pasta, tranquilo, indiferente a seus pulos.
A amora baixa suas ramas para amamentar
aos meninos com sua leite negra.
Mas há também um tom fustigador em expressões poéticas
recentes, como Este país (2009), onde sua linguagem se torna mais direta e
sua mensagem grave.
Este país cheira a sangue.
Caminho sobre seus mortos.
O ranger de seus ossos fere.
Este país, tão formoso, cheira a morte.
Este país é
minha morte.
A autora revela em seus artigos jornalísticos (e em
seu blog) as influências literárias que tem afetado sua obra criativa assim
como os ícones das últimas décadas que têm despertado seu interesse. Ambos os aspectos vão a se fundir de maneira
decisiva em sua produção literária. Dalí que não surpreenda que Iriart, quem
admira a figura e obra de Truman Capote, elabore (junto a Leonardo Losardo) a
recriação teatral duma entrevista de tão controvertida personagem. O texto
original em questão é “Voltas noturnas ou sugestões sexuais de dois gêmeos siameses”
material incluído em Música para Camaleões (Music for Chameleons, 1975), dedicado a
Tennesse Williams.
A adaptação de Iriart e Losardo, Truman (1997),
recolhe com fidelidade as reflexões e dúvidas do imprevisível escritor numa
entrevista que ele fizera-se. Disse-se
que Andy Warhol, quem então dirigia a revista “Interview”, lhe propôs a Capote
o realizar uma série de entrevistas às grandes figuras do momento num afã de
motivar a produtividade deste. “Voltas...” é uma dessas entrevistas. Sem pensá-lo duas vezes, Capote se
entrevistou a se mesmo porque tinha consciência do lugar de honra que sua
figura tinha chegado a adquirir dentro do núcleo social e intelectual do
momento.
O aporte de Iriart e Losardo em Truman consiste na
hábil construção de uma terceira personagem: Truman, aos sessenta anos,
encarando o fim de sua assombrosa trajetória vital. Assim, a esta terceira
personagem adjudicam-se lhe os parlamentos mais complexos e incisivos, mais
sagasses e esclarecedores. Bem se tem assinalado que a vida do autor americano
esteve cheia de sucessos, notoriedade e escândalos (causados pelas adições e
sua aberta homossexualidade) com os que Truman tratava talvez de compensar seu
abandono infantil, causado pelo suicídio de sua mãe, circunstância que o
corroía sem trégua. A isto se adicionaria um sentido de culpabilidade que
surgiria em relação com a obtenção e uso do material medular de A sangue frio, obra que logrou sua consagração literária definitiva. Em
efeito, a crítica considera seu “romance de não ficção” “In Cold Blodd”, uma
obra transformativa da concepção da reportagem. Bem anuncia a contracapa do livro que sua
prosa é “de um grão brio estilístico” associado só com as grandes ficções. De
fato, o recente filme realizado em Hollywood sobre a atormentada e genial vida
de Truman Capote registra o autoquestionamento do autor ao utilizar as confidências
de dois réus involucrados num afamado crime.
Os acusados foram executados seis anos mais tarde de
suas conversações com Capote, lapso de tempo que o autor teve que
esperar para publicar dito material como parte inovadora de sua reportagem. É
de supor que isto contribuiu a que os últimos anos de sua vida converteram-se
em entradas e saídas de hospitais e programas de reabilitação. Iriart e Losardo,
conscientes das ressonâncias explosivas recolhidas em “Voltas noturnas..” inserem
a adaptação teatral ao final da travessia de Capote logrando com isso agregar
dinamismo ao conflito do
texto original. A obra fecha com um tango na voz de Susana Rinaldi, outro ícone
que Iriart entesoura.
A paixão como tema central do texto se dá claramente
em Uma Certa Olhada (Una Cierta Mirada, 1994) onde a autora disseca o mistério
duma atração irrefreável entre suas duas personagens centrais. De maneira mais que oportuna, Iriart nos relata,
passo a passo e desde as páginas tomadas dos diários do casal, os altibaixos
pelos que atravessam ambas as personagens até assegurar-se da correspondência
emotiva. O recurso de expor os dois
diários, em forma alterna, elimina a necessidade dum narrador formal para o
relato e o que é mais importante, produz um tom de proximidade e intimidade entre o texto e os leitores
cúmplices.
É fácil advertir a admiração de Viviana Marcela Iriart pela obra da escritora
uruguaia Cristina Peri Rossi, cuja produção tem circulado com muito sucesso depois da etapa literária do “boom”. E esta afinidade não é casual. Suas preferências
criativas acercam-nas como no caso específico de Uma Certa
Olhada. Com ela comparte, em grande medida, sua eleição do amor obsessivo. Com
ela, além disso, coincide na utilização dos gêneros literários sem rigidez, na
expressão dum erotismo franco e desfrutável, em seus ideais pela igualdade da
mulher. É de assinalar que em sua
trajetória vital, ambas escritoras tem sido afetadas de raiz por ditaduras
repressivas e levam com elas a ruptura do exílio.
A trama do romance consiste na interação de duas
mulheres, Gal e Francesca, quem se resistirão inicialmente a uma relação
sentimental pela estranheza que produz em Gal uma interação lesbiana e pelo
temor de ambas ante a reação preconceitada do ambiente social. O texto é curto,
ligeiro, ágil e ainda lúdico, projetado em traços impressionistas. Há pinceladas
luminosas de ternura e de libido misturadas com tons cinza de pesadelos, vestígios
de violência que tem ancoradas na memória,
e da confrontação com os preceitos religiosos e sociais desse presente. A linguagem se mantem fluida de principio ao
fim e se faz uso das metáforas de tipo sensorial em profusão para projetar o
clima de erotismo que irradiam suas personagens.
Tanto na criação poética como na concepção de suas
obras teatrais e sua produção de romances Viviana Marcela Iriart vem definindo cada vez com maior
rigor a temática e a linguagem idônea para suas válidas explorações literárias.
É de esperar que estes textos tenham pronta acolhida nas casas editoriais
comerciais para lograr a difusão ampla que merecem.
©Dra.Susana D. Castillo
San Diego State University
Outubro 2009
Tradução ao português: Alejandra Rodrigues - vmi